O Hemograma completo: novas ferramentas para um exame tradicional
Novos parâmetros para uma tradicional mas inespecífica ferramenta diagnóstica trazem informações inovadoras para o uso clínico do hemograma
Por Dra. Adah Conti*
O hemograma é um dos exames mais solicitados na prática médica de todas as especialidades, pois traz informações que, apesar de inespecíficas, são relevantes não só quanto às doenças primárias do sistema hematológico como também – e principalmente – com relação ao auxílio diagnóstico e acompanhamento de qualquer afecção com componente infeccioso e/ou inflamatório. O exame reflete uma fotografia instantânea das células hematopoéticas no compartimento intravascular. Portanto, faz-se fundamental a correlação com a situação clínica no momento da coleta da amostra devido ao dinamismo na diferenciação e mobilização das linhagens celulares.
Nas últimas décadas, houve um grande aperfeiçoamento tecnológico nos contadores hematológicos e no desenvolvimento de novas metodologias. Os processos automatizados substituíram, com largas vantagens, os testes manuais. Atualmente, laboratórios com equipamentos de última geração oferecem significativo aumento na qualidade geral do exame devido à alta reprodutibilidade de resultados e aos baixos coeficientes de variação dos parâmetros analisados, além de possuírem melhor controle de qualidade e padronização de critérios para revisão médica dos resultados.
Contudo, apesar de todo o arsenal tecnológico utilizado para realização do hemograma, os contadores automatizados ainda não são capazes de definir e classificar corretamente algumas populações celulares, particularmente as células imaturas da série leucocitária. A adoção de equipamentos de microscopia com análise digital de imagens, acoplados às linhas de contadores hematólogicos e coradores de lâminas, permitiu um enorme avanço nesse processo no que tange à segurança ao paciente.
A utilização de tais equipamentos representa inúmeras vantagens, como manter a rastreabilidade e segurança das amostras pelo uso do sistema de códigos de barras, auxiliar na padronização da avaliação morfológica entre hematologistas, diminuindo a subjetividade na análise, diminuir o tempo para liberação de resultados, mesmo em casos complexos, e possibilitar o acesso remoto do hematologista às imagens, permitindo com dinamismo a opinião de um segundo especialista.
NOVAS FERRAMENTAS PARA UM EXAME TRADICIONAL
Série Vermelha
Os parâmetros que medem volume das hemácias (VCM) e conteúdo de hemoglobina (CHCM) são os mais comumente utilizados na classificação inicial das anemias. Já o RDW (Red Cell Distribution Width) é uma medida quantitativa da anisocitose, podendo ser utilizado como um dado para diferenciação entre anemias ferroprivas e traço talassêmico.
Como exame complementar ao hemograma, a contagem de reticulócitos oferece um marcador de atividade de resposta medular, diferenciando anemias regenerativas das hiporregenerativas. Atualmente, um novo parâmetro que mede a porcentagem de reticulócitos imaturos (IRF%) traz a possibilidade de se obter mais informações sobre a resposta medular, auxiliando tanto o diagnóstico laboratorial das anemias quanto o acompanha- mento após procedimentos terapêuticos, como Transplante de Medula Óssea ou Quimioterapia.
Outro parâmetro bastante promissor é o que mensura a concentração de hemoglobina dos reticulócitos (RETHe). É um marcador precoce de deficiência de ferro e tem sido aplicado para monitoramento de pacientes renais crônicos, particularmente aqueles em uso de eritropoietina.
Séria Branca ou Leucocitária
Utilizada em geral para avaliar processos inflamatórios e infecciosos, os dados do leucograma podem ser fundamentais também para a detecção precoce de doenças hematológicas, algumas delas pouco sintomáticas, como as doenças linfoproliferativas crônicas.
Para adequada interpretação do exame é necessário lembrar dos processos envolvidos na diferenciação e mobilização dos leucócitos. Um processo fisiológico ou patológico pode provocar uma resposta medular e modificar a composição do sangue periférico. Porém, componentes celulares, como neutrófilos segmentados e bastonetes, possuem um armazenamento nas margens do sistema endotelial, chamado de “sistema marginado” ou “pool marginal”, e sua mobilização afeta a composição do hemograma.
Essa mobilização ocorre em resposta a diversos estímulos, incluindo adrenalina e cortisol, endógeno ou exógeno. Assim, o estado de estresse dos pacientes, a realização de exercícios físicos, o uso de medicação, entre outros, podem alterar significativamente o exame. A mobilização de células para o espaço tecidual e a vida média das células em diferentes estados fisiopatológicos devem ser levadas em conta na interpretação, particularmente em exames seriados.
A automatização tecnológica trouxe avanços significativos para as contagens celulares. Tanto a contagem global quanto a diferencial de neutrófilos são muito mais exatas e precisas quando realizadas em equipamentos automatizados. A contagem manual realizada pelo hematologista é bem menos reprodutível e suas variações podem representar um fator interferente particularmente importante na avaliação comparativa de hemogramas seriados.
A automação possui algumas limitações que implicam a necessidade de avaliação morfológica direta pelo hematologista. Os laboratórios devem possuir critérios claros para revisão desses casos. Para série branca, os equipamentos alertam para situações em que a população celular não foi adequadamente classificada. Em geral, são casos de células jovens ou imaturas, em uma situação que ficou denominada como “desvio à esquerda”: são Metamielócitos, Mielócitos, Promielócitos e Blastos.
A presença dessas células, associadas a outros parâmetros do hemograma, representa uma excelente orientação tanto em casos reacionais quanto em doenças proliferativas hematológicas. Alguns equipamentos possuem parâmetro quantitativo de granulócitos imaturos (IG) que pode ser relacionado à presença ou ausência de desvio à esquerda, mesmo que não avalie seu escalonamento.
A revisão morfológica com auxílio de sistema de captação e análise digital de imagens é um avanço nesse passo da realização do hemograma. Além da série leucocitária, o sistema também permite a avaliação morfológica da série vermelha e das plaquetas.
As Plaquetas
A contagem de plaquetas significava um problema nos primórdios da automatização em hematologia. Atualmente, os equipamentos de última geração têm excelente performance nessa contagem, sendo muito superiores em exatidão e precisão se comparados às contagens manuais, o que ocorre mesmo em plaquetopenias severas e na presença de macroplaquetas.
Alguns parâmetros recentes como VPM (Volume Plaquetário Médio) e PDW (Platelets Distribution Width), de forma semelhante aos índices VCM e RDW, podem ser aferidos pelos contadores. Devem, porém, ser interpretados com cautela, principalmente devido à possibilidade de modificação do tamanho das plaquetas in vitro.
Em paquetopenias inferiores a 20000/mm3, o coeficiente de variação das contagens automatizadas pode ser superior a 20%, ainda assim bastante inferior ao CV das contagens manuais. A marcação com CD61 disponível em equipamento específico pode trazer resultados mais exatos para decisão transfusional nesses casos. Alguns equipamentos fornecem uma IPF (Quantificação de Plaquetas Imaturas) que, de forma semelhante aos reticulócitos na série vermelha, podem indicar níveis de resposta medular e direcionar o raciocínio diagnóstico nas plaquetopenias.
A presença de grumos plaquetários na amostra é uma situação in vitro que ocorre em cerca de 0,01% das amostras enviadas para hemograma. Esses casos devem ser detectados pelo laboratório, prevenindo a ocorrência de laudos de falsas plaquetopenias. Em tais situações, tanto métodos automatizados quanto os manuais têm dificuldade na contagem acurada das plaquetas, já que essas se encontram agrupadas. A solução é a coleta de nova amostra com anticoagulante alternativo, o que resolve a maioria dos casos. Eventualmente, a análise da lâmina com esses agupados plaquetá- rios permite ao hematologista estimar se o número de plaquetas está dentro do normal. Esse tipo de informação, contudo, deve ser interpretado com muita cautela porque as plaquetopenias leves po- dem não ser detectadas.
Dessa forma, o hemograma é um exame muito acessível e, apesar de inespecífico, a interpretação correta de seus dados pode ser uma ótima ferramenta de orientação diagnóstica e terapêutica. O avanço tecnológico, além da melhoria da qualidade analítica, permitiu a introdução de novos parâ- metros que podem ser relevantes na prática clínica se forem adequadamente utilizados. A consulta ao médico especialista do laboratório pode esclarecer dúvidas e auxiliar o direcionamento diagnóstico.
REFERÊNCIAS
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* Dra. Adah Conti
Médica Patologista Clínica. Residência Médica em Clínica Médica e Patologia Clínica pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). Pós-Graduação em Patologia Clínica nas áreas de Biologia Molecular e Hematologia na USP (Universidade de São Paulo). Especialista em Patologia Clínica (título concedido pela Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial).